Sebastião José de Carvalho e Melo (Lisboa, 1699 - Pombal, 1782), referido normalmente como marquês de Pombal, constitui sem dúvida uma das mais controversas e incontornáveis personagens da história portuguesa. Ao serviço do rei D. José I, distinguiu-se como político enérgico e tenaz, deixando o seu nome associado à reconstrução de Lisboa após o terramoto de 1755 e à realização de importantes reformas nos domínios económico e educativo. O facto de muitas dessas reformas afectarem interesses instalados na sociedade portuguesa de setecentos, sobretudo no que se refere ao papel do clero e da alta nobreza, viria a criar uma oposição crescente à sua actuação que culminaria com a sua queda em desgraça após a morte do soberano que tão fielmente servira.
Inserido no âmbito das suas actividades, o Serviço de Propaganda Nacional (SPN) editou, durante a década de 40, a colecção Pátria. O volume trinta e nove dessa colecção, editado em 1943, foi dedicado à figura e obra do marquês de Pombal. O texto, da autoria de Virgínia de Castro e Almeida, apresenta-se num estilo muito romanceado e simples, dirigido ao grande público e constitui exemplo evidente do tipo de História divulgado pelo Estado Novo, caracterizado pela exaltação dos feitos e dos heróis da história portuguesa.

Ao morrer, el-rei Dom Pedro II deixou ao seu filho Dom João o reino de Portugal restaurado. Depois da revolução de 1640 que pusera fora os espanhóis, seguiram-se vinte e sete anos de guerras onde a coragem e a firme vontade dos portugueses conseguiram a vitória sôbre a Espanha. E aqui se viu mais uma vez quanto pode a vontade de um povo que, enfraquecido, empobrecido, quási sem armas, sem homens bastantes e sem dinheiro, levaram a sua àvante, sózinhos, contra um inimigo muito mais numeroso e poderoso do que êle.
Dom João V subiu pois ao trono e tomou conta de um reino livre e independente. Por êsse tempo descobriram-se no Brasil grandes minas de oiro e de diamantes, e começou a vir de lá uma grande riqueza para Portugal.
Há gente que pensa mal de Dom João V. Tempo houve em que certos estranjeiros querendo diminuir a fama da nossa história gloriosa, começaram a fazer pouco de nós. E tanto barafustaram, encobertos, que conseguiram arrebanhar maus portugueses para escreverem a história de Portugal com mentiras e dizendo mal e desfazendo das nossas proezas. Por isso ainda hoje há muitos portugueses que não sabem a nossa história como ela realmente é.
Dom João V foi um grande rei; acusam-no de ter gasto muito dinheiro e de viver, com muito luxo. Mas êsse dinheiro, que êle gastava e êsse luxo em que êle vivia criavam o gôsto pelas artes, pela beleza e perfeição dos tecidos ricos, pelos trabalhos em madeiras e metais preciosos, por tôdas as coisas lindas que dão tanto prazer a quem as vê e que levantam o nome do povo que sabe produzi-las e admirá-las. Foi assim que a época de Dom João V ficou marcada como uma boa época de esplendor e de arte em Portugal.
Além disso Dom João V sempre amou o seu povo. O mais humilde dos seus súbditos podia vir pedir-lhe justiça. Acudia e consolava muitas misérias. E era homem de boa cabeça que sabia escolher os que os ajudavam. Teve ministros tomo poucos reis se podem gabar de ter tido: Mendonça Côrte-Real e o Cardeal da Mota são dois nomes que não se devem esquecer. A estes dois homens deve Portugal muito pelos tratados que fizeram com outros países, pela sua boa administração e zêlo com que sempre cuidaram das coisas do Estado. Dom Luís da Cunha e André de Melo e Castro são outros dois nomes aos quais Portugal deve gratidão e respeito, pois se impuseram no estranjeiro e conseguiram dar um bom lugar à nossa terra entre as nações da Europa. Muitos estranjeiros chamavam a Dom Luís da Cunha, o Príncipe dos Diplomatas.
Dom João V mandou construir o célebre mosteiro de Mafra, o Aqueduto das Águas Livres, o hospital das Caldas e outros edifícios importantes que davam trabalho a milhares de operários. Fundou fábricas de pólvora, de tecidos de lã da Covilhã; criou indústrias de tecidos de oiro e prata; instalou na Marinha Grande a indústria de vidros; fundou a fábrica de papel da Louzã; mandou fazer belas estradas; desenvolveu o comércio das nossas colónias; mandou instrumentos agrícolas para os colonos pobres do Brasil; criou o Arsenal de Lisboa para a construção de navios; mandou proceder a pesquisas mineiras; mandou construir a fábrica de armas e peças de artilharia; desenvolveu e protegeu as indústrias e a agricultura; mandou abrir a Vala da Azambuja e outros canais. Fundou a Academia Real da História; mandou vir do estranjeiro sábios, técnicos, artistas, para que a ciência, as indústrias e as artes fôssem ensinadas e desenvolvidas entre nós. Comprou no estranjeiro muitas e admiráveis obras de arte que ainda hoje enriquecem os nossos museus e igrejas.
Muitas das obras e desenvolvimento de indústrias, comércio, agricultura, artes, que geralmente se atribuem ao marquês de Pombal, são devidas aos esforços de el-rei Dom João V. Muito mais fêz êle por bem da nação, do que o marquês de Pombal. Muitíssimo mais se lhe deve.
Dom João V foi um grande rei que levantou o nome e a fama de Portugal, e lhe deu riqueza e esplendor, e o fêz respeitar e admirar por tôda a parte.
Dom João V teve muitos filhos. Por sua morte o mais velho subiu ao trono com o nome de Dom José I.
Dom José I ao subir ao trono, tratou de chamar para junto de si pessoa de autoridade para o ajudar a governar. Recomendou-lhe sua mãi um homem chamado Sebastião José de Carvalho e Melo. Era êsse homem casado com uma senhora austríaca que a rainha-mãi, também austríaca, protegia muito.
A rainha dizia assim ao filho:
- Chamai êsse homem para junto de vós. É resoluto e sabe mandar. Esteve muito tempo em Inglaterra e na Áustria, é pessoa séria e estudiosa e tem muita inteligência.
- Mas el-rei meu pai não gostava dêle - respondeu Dom José - nem nunca fêz nada que o tornasse conhecido.
- Ora - respondeu a rainha - os homens que tão bem serviram vosso pai, tomaram-se conhecidos pela maneira como o serviram.
Dom José lá se deixou convencer. Nomeou Sebastião José de Carvalho secretário do Reino; êste lugar era de grande poder.
Sebastião José de Carvalho era homem ambicioso. Queria enriquecer e queria mandar. Queria mandar, mandar, mandar. Como sabia que el-rei havia de fazer o que êle quisesse, tratou logo de princípio de arranjar as coisas do reino de modo que todo o poder ficasse na mão de el-rei.
Pouco tardou que Dom José lhe desse um título. Sebastião José de Carvalho passou a ser marquês de Pombal.
O reinado do bom rei Dom João V fôra comprido. Dom Luís da Cunha, o Cardeal da Mota e outros grandes homens e bons portugueses que êle soubera tão bem escolher para o ajudarem a governar, tinham morrido antes dêle, ou cansados e velhos, tinham-se retirado a descansar. O marquês de Pombal tinha agora o pulso livre. Estava à vontade.
O marquês não perdeu tempo.
No Brasil a obra dos jesuítas era digna de admiração. Sacrificando-se inteiramente a uma dura vida cheia de perigos e de privações, ensinavam os indígenas a cultivar a terra, ensinavam-lhes a religião cristã, ensinavam-lhes a construir habitações cómodas e a viver com decência e em paz. Muitos anos dêste trabalho tinham dado grandes resultados. Era certo que as terras assim bem cultivadas rendiam muito. Mas os padres da Companhia de Jesus não aproveitavam para si êsses lucros; empregava-nos em. alargar sempre mais o seu campo de acção.
Os colonos do Brasil também empregavam os indígenas na cultura das terras; mas não pensavam no bem dos indígenas; pensavam em se enriquecer. De modo que os indígenas fugiam para os jesuítas, só à fôrça, trabalhavam para os colonos. De tal modo que estes tiveram que trazer escravos de África para fazerem o trabalho das terras. E apenas viram que encontrariam bom apoio no marquês de Pombal, lá lhe fizeram suas queixas.
De que havia o marquês de se lembrar? Fundou uma companhia chamada Companhia Grão Pará e Maranhão e concedeu-lhe o monopólio de tudo, quere dizer: só a companhia podia navegar livremente e trazer de África quantos escravos quisesse e vendê-los pelo preço que muito bem lhes parecesse. E tinham navios de guerra e só os da companhia podiam construir edifícios e podiam mais isto e mais aquilo... E na companhia tinha o marquês de Pombal, sem gastar um vintém, grandíssimos lucros.
Ficou muita gente ferida nos seus interêsses. Comerciantes honrados que faziam negócios com os produtos do Brasil, viram-se arruinados de um dia para o outro.
Levaram a el-rei uma representação pedindo-lhe que visse a injustiça e o mal que vinha dêste tal monopólio. O marquês tomou conta do caso e a resposta que deu foi deportar para a costa de África os que tinham tido a coragem de assinar a representação. Quanto aos jesuítas, aí começaram as perseguições do marquês de Pombal contra êles, com tal injustiça e crueldade, que levantavam a indignação de tôda a gente. Mas ninguém se atrevia a dizer nada, porque quem falasse, ia para a costa de África ou para a prisão.
- O calado é o melhor - dizia o mestre Manuel ao seu compadre Joaquim lá na taberna, no Pôrto, onde tinha ido comprar uma garrafita de vinho para o jantar.
- Isso é o que tu pensas, Manuel! - respondeu o compadre - mas a gente cá em Portugal não está costumada a ser tratada assim e ou eu me engano muito ou isto ainda vai dar torto.
Cala a bôca, Joaquim - tornou o Manuel.
Mas o Joaquim pegou-lhe no braço e levou-o para um canto da taberna onde ninguém podia ouvi-los. E começou a falar baixinho:
- Olha, Manuel, isto vai torto e a gente tem de o endireitar. Os reis em Portugal sempre deram ouvidos ao povo e sempre o estimaram. Agora temos o marquês a mandar. Entre o rei e a gente, está sempre êle. O que êle quere é mandar e encher as algibeiras. Abaixo do rei sempre andaram os fidalgos e com êsses também sempre o povo se entendeu. E depois os padres, os frades, as freiras. Quem nos acode nas nossas aflições? Quem trata dos nossos doentes? Quem dá de comer a quem tem fome? Os conventos, as casas dos fidalgos, os padres. Pois é contra os fidalgos e os homens de Deus que se volta o marquês. O que quere é dar cabo dêles para ficar êle só a mandar. O rei tem um génio fraco e vai acreditando nas mentiras que o marquês diz e vai-se deixando enredar nas intrigas que êle tece. Isto não pode ser.
- Mas de que serve todo êsse palavriado? - tornou o mestre Manuel. - Não viste o que aconteceu àqueles que se queixaram a el-rei por causa da tal companhia do Brasil?
- Ora! tanto vai a bilha à fonte até que se quebra. Então cuidas que o povo do Pôrto vai deixar ir para diante esta. nova lei?
- Que lei?
- Esta dos vinhos, homem! Temos cá uma companhia de farçantes que tomou conta de todos os vinhos, aguardentes e vinagres desta banda de Portugal. Nem os lavradores têm ordem de vender senão à companhia e há-de ser pelo preço que lhes marcaram, nem ninguém pode comprar o seu vinho, a sua aguardente ou vinagre, senão à companhia.
- Então todos os taberneiros e outras casas de venda?
- Rebentam. E o marquês que se importa que centenas de famílias fiquem à. fome? contanto que êle mais os seus. amigalhaços dêem as leis?
- Isso não pode ser. Estás enganado.
- Não pode ser? Pois vem daí comigo e verás se pode ser ou não.
E lá foram os dois pelas ruas fora até que chegaram a uma casa onde entraram. Aí estava muita gente junta. Eram taberneiros, operários, artistas de vários ofícios e até outros de vida pouco respeitável. E tudo aquilo berrava e gritava contra a nova companhia das Vinhas do Alto Douro.
O mestre Manuel viu aquilo mal parado e esgueirou-se para casa. Quando lá chegou, disse à mulher:
- Maria, lembra-te do que te digo: isto vai mal e não tardará muito que uma grande desgraça rebente aqui no Pôrto. Deixa-te estar em casa que eu farei o mesmo. Antes quero perder uns dias de trabalho do que ficar sem cabeça.
- Valha-nos Nossa Senhora! - disse a Maria. - E em boa hora foi o nosso rapaz para Lisboa!
- Boa hora, boa hora ... Ninguém está seguro em parte nenhuma com o marquês a mandar - resmungou o mestre Manuel. - Tens notícias da nossa Rita?
- Onde tens a cabeça, homem? Pois não te mostrei esta manhã uma carta dela lá de casa do senhor Álvares Ferreira onde está a servir? E bem contente de lá estar...
- Que queres, mulher? ando com a cabeça não sei como com tôdas estas coisas...
No dia seguinte rebentaram os tumultos no Pôrto. Juntou-se muito povo no Largo da Cordoaria e daí foram em grupos uns por um lado outros por outro. Obrigaram os sineiros da Sé e da Misericórdia a tocarem a rebate. A gritaria, era tal que ninguém se entendia. Foram à casa do Governador do Pôrto pedindo em berros a livre venda do vinho. O Governador disse-lhes a tudo que sim para os sossegar. O que queria era ganhar tempo.
Cinco dias depois, um certo José Mascarenhas chegou ao Pôrto. Ia com poderes de fazer justiça. E chamava-se justiça àquilo! À fôrça de torturas e de falsas promessas, arrancava aos presos os nomes dos que se tinham metido nos barulhos.
Foram condenadas quatrocentas e setenta e oito pessoas, homens e mu1heres. Vinte e seis morreram na fôrca, e os outros foram degredados, ou condenados a açoites de onde saíam meios mortos, ou a remarem nas galeras para o resto da vida.
E todo o resto do povo da cidade do Pôrto foi castigado, porque as tropas que vieram para fazer as prisões, foram repartidas por tôdas as casas e as famílias tinham obrigação de as sustentar; e sustentaram-nas até venderem tudo que tinham, para lhes dar de comer.
A pobre Maria, que era boa dona de casa e tinha sempre tudo muito asseado e arrumadinho, não se consolava da desgraça em que se via agora depois da partida das tropas. O mestre Manuel era um bom oficial do seu ofício de pedreiro, nunca lhe faltava trabalho. Tinha criado os dois filhos e nunca faltara coisa nenhuma à Maria para os sustentar a todos. E, depois de tantos anos de esforços, de trabalho e de sacrifícios, viam-se agora desgraçados. O mestre Manuel caíu numa grande tristeza. Dizia assim:
- Não me meti nos barulhos. Meti-me em casa sossegado. De que serviu? Meteram-me em casa os soldados que me raparam tudo quanto eu tinha, e vejo-me agora na miséria. Mais valia ter feito como o meu compadre Joaquim que andou por aí a fazer distúrbios, a gritar aquilo que lhe pesava no coração. Morreu na fôrca, bem sei. Mas fêz o que entendeu e acabaram-se-lhe as freimas por uma vez...
- Cala a bôca, Manuel - disse a Maria. - Não tentes a Deus. Tens saúde, louvada Nossa Senhora, e bons braços ainda para trabalhar, e cá estou eu para te ajudar, que também, graças a Jesus Cristo, não me falta saúde nem fôrça. Desgraçados aquêles que estão doentes ou velhos e já não podem fazer nada senão ir pedir esmola. E a nossa Rita está em Lisboa sossegada e bem amparada. E lembra-te dos rapazes que por aí andaram nos barulhos e uns foram enforcados, outros degredados... E o nosso Zé também lá anda por Lisboa onde nenhum mal lhe aconteceu. Só temos que dar graças a Deus, Manuel. Cala a bôca e não te deixes tentar pelo demónio.
Mal ela tinha acabado de falar, quando lhe entrou pela casa dentro um vizinho em grande reboliço.
- Nossa Senhora! Nossa Senhora! Misericórdia!
- Que é isso, homem de Deus? preguntou o Manuel.
O vizinho tinha falado com um homem que chegara de Lisboa. Lisboa estava arrasada. O diabo andava lá à solta. A terra abrira-se e engolira tudo...
No dia 1 de Novembro daquele ano de l755, a terra começou a tremer em Lisboa. Estavam as ruas cheias de gente. Era o dia de Todos os Santos e as igrejas estavam apinhadas e muitas pessoas iam a caminho delas ou de lá voltavam. O dia estava bonito, cheio de sol. Aí por volta das nove horas e meia sentiram-se os primeiros abalos. Eram grandes safanões que vinham de baixo para cima e depois de norte para sul. E isto durou sete minutos. As casas começaram a caír. Abriam fendas, estalavam, e por fim desmoronavam-se com grande ruído. No chão abriam-se gretas largas e saíam fumos de enxôfre. Com estes fumos e a poeirada das derrocadas, tudo escureceu. Pelas praças e ruas da cidade o povo, doido de terror, corria desordenadamente aos gritos, sem saber o que fazia.
- Jesus! Nossa Senhora! Misericórdia! - cuidavam que era o fim do mundo.
E as casas continuavam a caír; as luzes acesas nas igrejas e nas casas onde havia lume nas cosinhas, iam pegando fogo às traves e tábuas que lhes caíam por cima. No susto e aflição em que todos andavam, ninguém pensava em apagar os incêndios. Uns fugiam desvairados sem saber para onde, outros com o sentido de salvar o que tinham ou de acudir aos que tinham ficado debaixo dos escombros, tornavam a entrar nas casas que se derrocavam e os sepultavam.
Abriram-se as prisões para salvar os presos. Homens criminosos e do pior que havia espalharam-se à solta pela cidade, como feras, a roubar, a matar, a fazer ainda pior. Não podia haver desgraça nem horror maior. Mas esta calamidade cresceu ainda mais. Como se não bastasse o terramoto e o fogo, o mar também acudiu a ajudar naquela destruição medonha.
Pelas praias duma banda e de outra da entrada do Tejo, o mar de repente recuou de modo espantoso e deixou o fundo à vela e, tendo recuado assim, encapelou-se numa muralha de água altíssima que se atirou com tôda a fôrça sôbre a costa. Assim foram engolidas por aquela enorme montanha de água povoações inteiras da costa e tanta e tanta gente desapareceu para sempre. E o mar, não contente ainda, arremessou pela embocadura do Tejo dentro as suas ondas furiosas e altas como altos montes. Assim veio aquela espantosa muralha de água pelo Tejo acima, arrasando tudo que encontrava e, quando chegou a Lisboa espalhou-se pelos bairros baixos com tal raiva e redemoínhos e sorvedoiros que só parecia querer mostrar a cólera de Deus contra os homens desta infeliz terra.
O horror do que se passou em Lisboa durante aquela catástrofe não se pode contar. A gente corria pelas ruas desvairada, os gritos de susto confundiam-se com os gemidos dos feridos e moribundos. Ninguém sabia onde estavam as pessoas que mais estimava. Uns morriam de mêdo, outros queimados pelo fogo devorador dos incêndios, outros esmagados pelos desmoronamentos, outros afogados e arrastados pelas ondas que alagavam uma parte da cidade.
Alguns que tentavam salvar das ruínas das suas casas alguns valores, encontravam-se com os ladrões que aproveitavam a confusão para roubar jóias, pratas, roupas no meio das habitações arruïnadas e que não hesitavam em matar quem os incomodasse.
Todos estes horrores levam tempo a contar. Levam muito mais tempo a contar do que levaram a destruir a cidade de Lisboa. Em breve deixou a terra de tremer; em breve se retiraram as águas do mar. Só no meio da fumarada dos incêndios, da poeirada dos desmoronamentos e dos fumos de enxôfre que saíam da terra, e que, todos juntos, escondiam a luz dos sol e faziam quási do dia noite, começou a pouco e pouco a ver-se a calamidade deixada por tantos desastres. Nunca se soube ao certo o número dos mortos, mas a gente daquele tempo calcula êsse número em mais de dezóito mil.
Começaram logo os socorros. Os religiosos de todos os conventos espalharam-se logo pela cidade acudindo aos feridos e ajudando os moribundos a bem morrer e principiando a cuidar de enterrar os mortos. Enterrar os mortos era coisa urgente. Tantos, tantos mortos! Se não se acudisse a êsse trabalho, os corpos apodrecidos poderiam infestar os ares e espalhar alguma peste. Nesses tristíssimos trabalhos é preciso não esquecer o que se deve à caridade dos frades e freiras e dos jesuítas que tantos esforços fizeram, sem descanso, para acudir a todos. Dia e noite labutavam, a salvar gente dos escombros, a levar para os conventos os que encontravam sem abrigo, a tratar dos feridos, a enterrar os mortos.
E os fidalgos? Que havia de ser de tantos desgraçados se não fôsse a ajuda dos fidalgos que encheram os seus palácios de gente que não tinha abrigo, que deram o trabalho dos seus braços e o dinheiro dos seus cofres para socorrer tanta desgraça. Os palácios e grandes casas dos fidalgos e os conventos que o terramoto não derrubou, nos altos de Lisboa e nos arredores, encheram-se de infelizes que ficaram sem abrigo. Pelos jardins e cêrcas das suas casas e conventos, armaram tendas e barracas para abrigar gente. E isto durou meses, e durante êsse tempo dos cofres dos fidalgos e dos conventos saía a sustentação de todos aquêles infelizes.
Já é tempo que o povo de Portugal saiba o que durante tanto tempo lhe quiseram esconder: que foram os frades e freiras e os fidalgos que lhe acudiram naquela grande aflição do terramoto de Lisboa de 1755; e se não fôsse essa gente, o marquês de Pombal pouco poderia ter feito.
Houve muita gente de boa vontade que andou a enterrar os mortos ajudando nesse grande trabalho os frades e padres de S. Vicente de Fora, de S. Bento da Saúde, de S, Francisco de Paula, os padres da Companhia de Jesus e muitos outros, e muitos fidalgos.
Improvisaram-se hospitais nas cêrcas dos conventos de S. Bento da Saúde, de S. Roque, nas casas de Dom Antão de Almada, nos celeiros do conde de Castelo Melhor e outros.
Onde o marquês de Pombal fêz bom trabalho foi na firmeza com que castigou os comerciantes que quiseram abusar das circunstâncias para aumentar os preços de tôdas as coisas, e também no cuidado que teve de mandar vir os géneros para alimentação da cidade, e na severidade com que mandou enforcar ràpidamente todos os patifes que andavam a roubar as igrejas e outras casas depois do terramoto. Sobretudo deve-se à sua boa cabeça a pressa e competência com que mandou reconstruir a cidade entregando essa tarefa a homens capazes. Assim se reconstruiu tôda a parte baixa da cidade conforme agora está com as ruas mais largas e tôdas alinhadas e as casas com as melhores condições higiénicas que então se conheciam.
Depois de muitos sustos e aflições o mestre Manuel e sua mulher tiveram a alegria de ver chegar ao Pôrto os seus dois filhos, José e Rita.
- Ai, minha rica mãi! - dizia a Rita agarrada à Maria - Pelo amor de Deus não me mande nunca mais para longe de si!
O José depois de abraçar os pais, sentou-se a um canto. muito triste. O Manuel e a Maria olhavam para os filhos com os olhos rasos de lágrimas. O José e a Rita não pareciam os mesmos. Magros, escanzelados, com os olhos espantados como se tivessem endoidecido.
- Fala, rapaz! - disse o mestre Manuel - Onde estavas tu quando tudo começou a esbarrondar-se? E por onde andaste? O que fizeste?
- Sei lá!... Parece que não me lembro de nada... Nada senão tudo a caír e gente a fugir e a gritar... E fogo por tôda a parte... E gente que corria para a praia para se livrar do fogo e aí vinha o mar furioso e engolia tudo... E mortos.., mortos... mortos por tôda a parte... e doentes e feridos a gemerem e a gritarem...
O José e a Rita caíram doentes. Os pais trabalhavam noite e dia para pagarem os remédios e o sustento dos filhos. Quando estes principiaram a melhorar, o Manuel voltou uma noite para casa e disse à mulher:
- Tenho andado a cismar numa coisa, Maria. O trabalho aqui é pouco agora. Todos os pedreiros e carpinteiros abalam para Lisboa, para as obras da cidade. Se a gente fôsse também? Eu sou um bom oficial do meu ofício e o nosso José trabalha de carpinteiro como qualquer outro.
A Maria olhou à volta de si. Viviam naquela casita desde que se tinham casado e a pouco e pouco lhe tinham dado o recheio à fôrça de muitos anos de trabalho.
Já não sei o que é melhor nem pior - disse a Maria. - Se fôsse antes dos barulhos, tirava-te essa ideia da cabeça porque quem me quisesse tirar daqui era como se me matasse. Agora ... Olha: nem móveis, nem loiças, nem roupas ... Tudo se foi. Paredes, bancos e enxergas e um pedaço de pão, com a ajuda de Deus, arranjaremos em qualquer parte. Faze lá o que entenderes, Manuel, tens melhor cabeça do que eu.
Abalaram para Lisboa todos quatro. O Manuel e o José arranjaram logo trabalho. Alugaram uma casita. A Maria e a Rita começaram a vender peixe e, como havia muitos operários na cidade por causa das obras, êste negócio era bom. Assim puderam comprar a pouco e pouco algum recheio de casa e viviam menos mal. Mas alegria, nenhum dêles a tinha. Não havia em Lisboa quem tivesse alegria. O marquês de Pombal não se cansava de perseguir os religiosos e os fidalgos; todos viviam a tremer, pensando quando chegaria a sua vez.
Á noitinha juntava-se a família à hora da ceia. Ali, de portas e janelas fechadas e falando em voz baixa, diziam entre si o que sabiam e o que pensa-vam. A Maria começava sempre por lhes recomendar:
- Cuidado! Falem baixinho. Está tudo cheio de traidores, de, espias. Por um sim ou por um não vai-se parar à cadeia e só de lá se sai para a fôrca, para o destêrro, ou para a Inquisição.
A Inquisição! - disse o José. - Dantes na Inquisição quem mandava eram os padres e só lá se julgavam os crimes contra a religião. Mas o marquês já lhe deitou a unha e quem manda agora lá é êle. Se apanham alguém a geito ferram com êles na Inquisição e com torturas fazem-nos denunciar seja lá quem fôr...
- O que a gente passa agora! Quando me lembro do tempo de el-rei Dom João V até me parece sonhar! - disse o mestre Manuel. - Deus tenha sua alma na glória, que foi um bom rei amigo do seu povo. Agora anda a gente aqui com mêdo uns dos outros e sem se atrever a fiar-se em ninguém. O povo de Portugal nunca se deixou governar por tiranos. O que o marquês quere é dar cabo da Igreja e dos fidalgos para ficar só êle a mandar.
Assim se passaram três anos depois do terramoto. E um dia o mestre Manuel e o José chegaram a casa para a ceia com uma notícia terrível.
- Quiseram matar el-rei! - disse o mestre Manuel.
- Isso pode lá ser! - respondeu a Maria. - O povo anda tão assustado que não faz senão inventar mentiras.
Mas era verdade; ou pelo menos era o que o marquês de Pombal fazia correr na cidade; e o caso contava-se assim: Voltava o rei na véspera para o palácio com um protegido seu chamado Pedro Teixeira que não prestava para nada, quando o duque de Aveiro e mais dois fidalgos tinham descarre-gado dois tiros contra a sege real. O cocheiro apressara os cavalos, mas mais adiante havia outra espera; mais dois, José Policarpo e António Álvares. Esses atiraram também e el-rei fôra ferido num braço. Esta foi a história que se contou e uns acreditaram e outros não acreditaram e levaram tudo à conta de mentiras do marquês que andava sempre a inventar intrigas para se ver livre dos fidalgos.
Quando ouviu falar em António Álvares, a Rita fêz-se branca como a cal da parede.
- Isso é mentira - disse ela. - O meu patrão é um bom homem e não ia assim dar tiros contra el-rei.
A Rita estivera mais de cinco anos em casa de António Álvares, a servir, antes do terramoto. Não voltara para lá por não querer deixar a mãi que precisava agora muito de quem a ajudasse; mas ia muitas vezes visitar os antigos patrões e a mulher de António Álvares era muito amiga dela.
- Ai, a minha rica senhora! - dizia a Rita a chorar.
Andava tudo cheio desta notícia. Não se falava noutra coisa, mas tudo em segrêdo que ninguém se atrevia a falar em voz alta. Ninguém viu el-rei ferido. 0 marquês não deixava ninguém chegar-se ao pé dêle, a não ser o médico e o tal Pedro Teixeira que não prestava para nada.
Isto foi no princípio de Setembro; mas só em meados de Dezembro apareceu um edital a dizer do atentado. E nesse mesmo dia se começaram a fazer prisões. Por ordem do marquês prenderam o marquês de Távora, o marquês de Alorna, o conde de Atouguia, o conde de Vila Nova, o conde da Ribeira Grande, o conde de Óbidos, muitos outros fidalgos, homens do povo, padres jesuítas.
Pessoas de valor que têm escrito a história do atentado contra el-rei Dom José, por mais que estudassem e procurassem nos arquivos daquele tempo, nunca encontraram nenhum testemunho da verdade dêsse crime. O marquês de Pombal era homem sem temor a Deus e que só se deixava guiar pela sua ambição. Durante os anos que andou no estranjeiro antes de ser ministro, fartou-se de aprender as ideias novas que por lá se levantavam já contra a Igreja. Não hesitou em inventar a história do atentado só pelo gôsto de satisfazer o ódio que tinha aos fidalgos mais chegados a el-rei é cuja influência temia que viesse algum dia a fazer-lhe sombra.
Todos os presos foram condenados, e os suplícios que lhes acabaram a vida foram tais que nem sabemos como hão-de ser contados. Mas o dever de quem conta a história, é dizer a verdade e estes livros são destinados ao povo de Portugal a quem compete saber a verdade e não andar enganado com mentiras.
As execuções foram feitas com grande espectáculo na Praça do Cais, em Belém, onde se erguera ao meio um grande e alto estrado para que o povo apinhado em volta pudesse ver bem os horrores que ali se iam passar.
Em cima do estrado estavam umas poucas de aspas, isto é, cruzes em formas de X a que chamam cruzes de Santo André onde os condenados se-riam amarrados, e machados, macetas, baraços e outros instrumentos de suplício.
A praça estava apinhada de gente. Chegou primeiro uma cadeirinha acom-panhada por dois padres. Dela se apeou a marquesa de Távora, senhora de cabelos já grisalhos. O algoz pegou-lhe na mão e deu com ela a volta ao estrado para que todos a vissem bem. Depois foi-lhe mostrar os instrumen-tos de suplício explicando-lhe como iam morrer o marido e os filhos. Sen-taram-na em seguida num banco e o algoz, de um golpe de machado, cortou-lhe a cabeça.
Foram depois chegando os outros condenados. Eram atados nas aspas, passavam-lhes um baraço ao pescoço e, ao mesmo tempo, com uma maceta pesada quebravam-lhes as canas das pernas e dos braços.
Quando se terminou esta medonha chacina, veio por fim António Álvares Ferreira que era guarda-roupa do duque de Aveiro. Esse devia ser queimado vivo. Mas depois de amarrado e do fogo ser ateado, como soprava vento rijo, o fumo e as chamas não o sufocaram logo e foi sendo queimado a pouco e pouco com sofrimentos que nem se podem contar.
E el-rei, persuadido de que o marquês fazia aquilo para castigo dos que tinham tentado matá-lo, quis dar-lhe um prémio e fê-lo conde de Oeiras e concedeu-lhe outras mercês!
Logo a seguir a estes suplícios da nobreza, o marquês começa a sua perseguição aos padres jesuítas que tantos e tão grandes serviços tinham prestado a Portugal. Mandou em Dezembro de 1758 cercar-lhes as casas, fazer-lhes buscas, sequestrar-lhes os bens, fechar-lhes as escolas e proibir-lhes as comunidades em Portugal, nas ilhas, em África, na Índia, na China, no Japão, no Brasil, por tôda a parte onde aquêles homens admiráveis tinham espalhado havia tanto tempo, com tanto trabalho e através de tantos perigos e constância, a doutrina de Cristo, e o respeito do nome português. E por fim, o marquês de Pombal expulsou de tôdas as terras portuguesas os padres da Companhia de Jesus e mandou queimar pela Inquisição, um pobre jesuíta de mais de setenta anos que jazia preso por êle numa masmorra, doente e quási doido à fôrca de sofrimentos, gasto por uma vida inteira de sacrifícios e de caridade no ultramar português!
Criou um sindicato de pesca em Vila Real de Santo António; e, como os pescadores de Monte Gordo não se mostrassem muito dispostos a mudar para Vila Real as suas residências, o marquês mandou largar fogo às suas casas e tôda a povoação de Monte Gordo ardeu, de modo que os pescadores tiveram que ir viver à fôrça para Vila Real.
Tendo conhecimento que alguns desertores tinham fugido para a Trafa-ria, o marquês mandou cercar a povoação por um cordão de tropas e lançar-lhe fogo. Os infelizes moradores corriam de um lado para o outro no meio das chamas, tentando salvar os seus doentes e as crianças. Muitos morreram. Alguns puderam escapar porque os soldados que formavam o cordão, cheios de dó, os deixavam fugir. Mas os que fugiam iam meio nus e tinham perdido tudo que possuíam neste mundo.
E é êste o homem que alguns historiadores quiseram levantar como um grande ministro e um grande homem de Estado digno do respeito e da gratidão do povo português!!
Fêz coisas bem feitas? Fêz algumas. Mas bem melhores coisas fizeram Dom João V e outros reis de Portugal. Das coisas boas que fêz, a maior parte tinham sido começadas por Dom João V.
É dêle a invenção de companhias para o comércio e indústrias. O que podia dar bom resultado noutros países, não servia entre nós porque não estávamos ainda refeitos de tantas desgraças passadas, nem educados para tais fins. O resultado era o abuso dos que mandavam nessas companhias e a miséria do povo que perdia a sua liberdade de trabalhar conforme gostava e entendia.
Mandou o marquês vir, gente competente de fora para ensinar indústrias em Portugal; deu subsídios a fábricas para se desenvolverem. Como acabou com as boas e tão numerosas escolas dos jesuítas, espalhadas por todo o reino e pelo ultramar, fundou outras a seu modo. As classes pobres ficaram sem ensino. Quando êle desapareceu, pouco se aproveitou da sua obra. Como se havia de aproveitar. As coisas feitas sem amor, sem coração, só ditadas pelo orgulho pelo ódio, são sempre plantas daninhas cujos frutos não prestam.
A administração do Estado era má. Não havia pontualidade nos paga-mentos. As tropas não eram pagas, devia-se sempre o pré dos soldados. Os ordenados dos criados do Paço não se pagavam; andavam todos quási sem se poderem agüentar e calados. Quem se queixasse ficava mal. Os operários do Arsenal ficavam meses sem receber um real. A esquadra compunha-se de doze navios que apodreciam no Tejo sem poderem servir de nada. Um ministro francês que estava então em Lisboa, escrevia estas linhas:
- Faz pena ver em tamanha decadência esta nação que num século de ignorância, se cobriu de glórias, abrindo aos outros povos da Europa caminhos até então desconhecidos.
E o tempo foi passando.
Num domingo de inverno mas muito cheio de sol, lá estava o mestre Manuel em casa com a mulher e os filhos e alguns vizinhos que tinham vindo saber notícias da Rita.
- Agora vai indo melhorzinha, graças a Deus - dizia a Maria. - Parece que desde que o marquês saíu de Lisboa já sem poder fazer mal a ninguém, voltaram-lhe as fôrças da saúde.
- Como foi o comêço desta doença da sua Rita? preguntou a irmã de urna vizinha que vivia na Outra Banda e viera naquele dia visitar a família.
- Ora o que havia de ser, senhora Rosária? - respondeu a Maria. - Foi sempre uma rapariga rija e saüdável. Não havia trabalho que lhe metesse mêdo. Mas quando foi aquêle inferno lá em Belém e a morte tão medonha daqueles fidalgos (Deus tenha suas almas, que nunca fizeram mal a ninguém) e que a minha Rita soube das aflições em que o senhor António Álvares acabou, tombou para a banda sem sentidos como um corpo morto e daí por diante nunca mais teve saúde nem alegria. Esteve a servir uns pou-cos de anos em casa dêle e tanto o senhor António Álvares como a mulher a estimavam muito. Criou uma tal paixão com aquela desgraça que durante dois anos esteve entre a vida e a morte e depois ficou como tonta, sempre a cismar, sentada num canto a falar sozinha e sem se querer mexer para coisíssima nenhuma. Muito devagarinho, hoje uma coisa, amanhã outra, lá tem ido melhorando. Mas melhoras deveras só desde o dia em que o maldito marquês foi desterrado para fora de Lisboa. Só dêsse dia em diante é que começou a ganhar amor ao trabalho e a dar atenção ao que a gente lhe diz.
- Dizem que a rainha senhora Dona Maria é de vontade firme - disse um vizinho. - Ainda bem. O marquês já abalou para Pombal e já não manda nada. O que êle precisava, sei eu.
- Tristes anos passamos, a minha família mais eu - disse o mestre Manuel. - Arruinados com os barulhos do Pôrto. Depois aqui a trabalhar no Arsenal com o meu filho meses e meses sem vermos um real de férias. Até fome passamos, louvado seja Deus! Mas isso ainda não era o pior. O pior era o mêdo em que a gente vivia, sempre à espera de ir dar com os ossos na prisão sem saber porquê...
Um outro vizinho, que era todo bem falante, disse assim:
- Tanto espalhafato, tanta mortandade, tanta desgraça que aquele marquês espalhou nesta terra.., e tudo para quê? Deu cabo de quantos fidalgos e quantos jesuítas pôde. É o que êle fêz. E para quê? Para ser só êle a governar. Mas nas aflições do povo quem nos acudia sempre? Eram os fidalgos, eram os conventos. Quem nos ensinava os filhos? Quem nos socorria nas más horas? Eram os jesuítas. Quem é que o maldito marquês ajudou e amparou? Ladrões e renegados que se encheram até rebentar.
- Cala a bôca, homem! - acudiu a mulher dêste vizinho. - Até te pode dar alguma coisa com essa raiva que tens.
- O que lá vai, lá vai - disse o mestre Manuel. - Deus dê saúde à nossa raínha que, pelos modos, vai remediar muitos males. Águas passadas não moem moinhos.
Dom José I não deixou senão filhas. Não teve nenhum filho. A princesa mais velha, subiu ao trono por morte de seu pai com o nome de Dona Maria I, no ano de 1777.
O marquês de Pombal, vendo que as coisas mudavam e receando que a nova rainha o mandasse embora, pediu a sua demissão e licença para ir viver nas suas terras de Pombal.
Dona Maria que era uma senhora muito boa e muito inteligente, disse que não queria começar o seu reinado com tantas lágrimas e dores como havia então entre os seus súbditos, e mandou soltar todos os presos que o marquês lá mandara fechar. Saíram das masmorras mais de oitocentos desgraçados. Mais de mil e seiscentos lá tinham morrido.
Muitos tinham entrado novos e robustos e saíram com cabelos brancos e a saúde perdida para sempre, tais eram os sofrimentos e os maus tratos.
Pouco depois as famílias dos condenados aos suplícios de Belém e os que saíram das prisões onde tinham entrado sem culpas, pediram a revisão dos seus processos e não descansaram enquanto lhes não foi feita justiça.
Tais eram as queixas que o marquês de Pombal que se fartara de instaurar processos, foi por sua vez levado aos tribunais. Teve que responder a vários interrogatórios severos, perdeu a cabeça, humilhou-se, pediu perdão à rainha com vergonhosas lamentações.
Estava velho e doente. A rainha, atendendo à sua idade avançada perdoou-lhe as penas corporais, mas desterrou-o para longe da côrte e obrigou-o a pagar o que devia ao Estado e a particulares. Estava quebrado o marquês e o seu orgulho. Pouco depois morreu em Pombal com oitenta e três anos e foi prestar contas a Deus.