quinta-feira, 16 de abril de 2020

Documentos - Gravíssimo Atentado Contra o Presidente da República




Figura incontornável da 1ª República, Sidónio Pais (1872-1918) chega ao poder através de um golpe militar em Dezembro de 1917, na sequência do qual, depõe o governo chefiado por Afonso Costa e o Presidente da República, Bernardino Machado. Inicia então uma governação de cariz populista que tinha por principais objectivos a pacificação da conturbada cena política e simultaneamente, a recuperação da difícil situação económica em que a a 1ª Guerra Mundial mergulhara o país. Todavia, e apesar do seu enorme carisma que levou alguns a denominarem-no como o "Presidente-Rei", os conflitos de interesses reinantes na sociedade portuguesa e as divisões no seio das forças de suporte à sua governação não lho permitiram.

Em face de uma crescente contestação à sua governação, Sidónio Pais passa os últimos dias de 1918 em deslocações a várias partes do país em busca de apoios que lhe permitissem serenar a situação. Escapa por pouco a uma tentativa de atentado a 6 de Dezembro. A 14 de Dezembro decide partir para o Porto. Morre, ao fim da noite, assassinado em plena Estação do Rossio.

O documento que se segue é a transcrição da reportagem do Diário de Notícias, publicada na sua edição de 15 de Dezembro de 1918. Sobre o seu conteúdo apenas duas notas: a primeira, para a enorme confusão em que se encontrava mergulhada a investigação; a segunda, para o detalhe na identificação dos envolvidos nos acontecimentos: nomes, moradas, profissões, algo de impensável para a prática jornalística dos nossos dias. 


GRAVISSIMO ATENTADO CONTRA O PRESIDENTE DA REPUBLICA 
MORTE DO SR. DR. SIDONIO PAES

Não nos permite a natural emoção com que escrevemos, emoção que rapidamente se espalhou por toda a cidade ao saber-se do criminoso atentado que vitimou o sr. dr. Sidónio Paes, largos comentários ao lamentável acontecimento.

Não podemos, porém, deixar de energicamente o verberar como merece, não só porque sempre profundamente nos repugnaram os atentados pessoais mas sobre tudo por se tratar de um Chefe de Estado, que pela sua valentia, pela sua energia pelas suas extraordinárias faculdades de trabalho e pelo seu caracter, vinha dia a dia grangeando vivas simpatias por todo o país.

De facto, o sr. dr. Sidónio Paes caía varado por uma bala no próprio momento em que ía seguir viagem para a capital do norte, onde lhe estava preparada uma amistosa recepção, sendo à sua partida muito vitoriado pela multidão que na «gare» do Rocio se comprimia para assistir a esse acto.

Outra razão ainda há para que todo o público imparcial comnosco condene o atentado, e essa é imposta pelo momento histórico que atravessamos, a dois passos da assinatura do tratado de paz que, tão gloriosamente para todos os países aliados, vem pôr termo ao tremendo pesadelo de cêrca de cinco anos de guerra.

Razão é essa também para que, ao natural ímpeto de reprovação que o atentado despertou na opinião publica, rapidamente suceda o sangue-frio e a ponderação tão necessária após as graves horas da vida. Todos os exageros e as violências devem ter o seu termo, não só para que mais facilmente se apurem as responsabilidades do tristíssimo acontecimento, mas principalmente pelo respeito que mutuamente nos devemos perante tão lamentável caso.

Mais uma vez, por desvairados motivos, correu em Lisboa o sangue de inocentes. Há, além do Chefe de Estado, mais pessoas mortas e muitos feridos, o que veio avolumar a gravidade do atentado. Comovidamente os lastimamos. São mais lares a cuja porta a dôr bateu, muitos deles de humilde gente do povo, famílias de quem pagou caro a sua natural curiosidade, ou o espontâneo desejo de manifestar a um Chefe de Estado, num acto oficial, a sua simpatia.

Para todas elas vai a expressão do nosso maior pesar, cumprindo-nos especializar a ilustre família do sr. dr. Sidónio Paes, neste momento enlutada pela morte do Sr. Presidente da República.

Adiante vão os pormenores que sobre o atentado conseguimos obter.

A morte do sr. dr. Sidónio Paes
Como se deu o atentado - Os primeiros pormenores 

Eram 23,50 quando o sr. Presidente da República, de automóvel, com os seus ajudantes, chegou ao «hangar» exterior da estação do Rocio, onde uma companhia da guarda republicana, de grande uniforme, com a respectiva banda, fazia a guarda de honra. Pela rampa que conduz ao referido «hangar», havia grossos cordões de polícia, o mesmo acontecendo no salão da estação, vendo-se ainda nas ruas próximas numerosos agentes da preventiva e da judiciária.

O sr. dr. Sidónio Paes, seguido da sua comitiva e de alguns elementos oficiais que o aguardavam, encaminhou-se para o salão em direcção á «gare».

Levantaram-se aclamações que o sr. dr. Sidónio Paes agradeceu resolutamente, e seguindo sempre á frente da sua comitiva o Chefe de Estado dirigiu-se pelo meio do cordão de polícia para uma das portas centrais que dão ingresso na «gare», a quinta para quem venha do lado do ascensor.

Quando S. Ex.ª ía a transpôr a referida porta, partiu do seu lado direito uma detonação.

O sr. dr. Sidónio Paes voltou-se para o lado de onde partira o tiro e recuou. A seguir, partiram mais dois tiros e o sr. dr. Sidónio Paes, cambaleou e caiu redondamente no chão.

Socorrido imediatamente, foi transportado pelas pessoas que de perto o acompanhavam, incluindo os seus ajudantes, e pelo sr. Augusto Ludgero Marques de Abreu, até ao seu automóvel.

O sr. Presidente da República apesar de ferido, mantinha perfeita lucidez e serenidade, sendo conduzido imediatamente a toda a velocidade do automóvel, para o hospital de S. José.

Enquanto se socorria o sr. dr. Sidónio Paes, a polícia e alguns populares caíram sobre o agressor e ao mesmo tempo sobre um outro indivíduo que estava em palestra junto do criminoso e que, segundo se afirma, foi visto puxar por um revólver nikelado.

O criminoso caiu logo morto com um tiro pelas costas, e o outro individuo foi agarrado pelo contínuo da secretaria de Estado dos abastecimentos, sr. Rego, pelos agentes de investigação Custódio das Dôres e Cunha, procurando os populares linchá-lo, como acontecera ao criminoso, chegando a ser agredido violentamente, de que lhe resultaram vários ferimentos.

Depois do atentado estabelece-se o pânico 

Tudo isto se passou com uma rapidez de assombro e quando toda a gente se restabeleceu da surpresa foi para fugir desordenadamente num pânico indescritível, uns para a rua, outros irrompendo pela estação dentro em direcção ao túnel e ao assalto das carruagens onde procuravam refugiar-se.

A polícia, desorientada, também disparou repetidas vezes as suas espingardas, e logo três populares caíram mortos e muitos outros feridos, incluindo alguns agentes da própria polícia.

E passado o primeiro ímpeto do pânico podia verificar-se que o assassino é um indivíduo aparentando 30 anos, de regular estatura, pequeno buço preto, vestindo fato castanho, sobretudo escuro e gravata preta com alfinete de oiro, e calçando botas amarelas, tendo enrolado ao pescoço um «cache-col» de astrakan.

Caiu no próprio local de onde praticara o atentado, rolando-lhe pelo chão o chapéu mole.

Dos documentos que lhe foram encontrados nada de positivo se pôde apurar sobre a sua identidade. Papéis vários, sem importância, e entre eles algumas facturas passadas em nome de Luiz Furtado, morador na rua do Arsenal. Além disto uma pistola Browning, a arma com que praticou o crime, contendo cinco cargas, uma delas no cano já picada.

Como acima dizemos mais quatro indivíduos foram mortos no momento do tumulto que sucedeu ao crime. Todos pareciam trabalhadores, pobremente vestidos, verificando-se depois que um deles era há pouco tempo carregador da estação. Uma bala tinha-lhe destruído o maxilar superior, e a um dos outros foram encontradas num bolso duas cartas fechadas e 3$10 em dinheiro.

Todos foram transportados para o Necrotério, ignorando-se até à hora adiantada a que escrevemos, a sua identidade.

Trata-se de um « complot» de há muito preparado 

O assassino parece ter pertencido á Liga da Mocidade Republicana, a que também pertencia aquele indivíduo que ha dias em Belém tentou praticar idêntico atentado.

Ao passar o sr. dr. Sidónio Paes, afastou com um empurrão o guarda 1:582, da 4ª esquadra, disparando então a sua arma. Apresenta um pequeno golpe no lábio superior.

O indivíduo que o acompanhava trajava decentemente, envergando um capote á alentejana, sendo-lhe encontrado num dos bolsos um revólver.

Ao ser agarrado e agredido pediu que o não matassem, pois que tinha importantes revelações a fazer.

Parece que é militar, cabo do regimento de infantaria 16, para onde fôra transferido da companhia de saúde.

No hospital e no posto da Misericórdia recebem curativo vários populares 

Várias pessoas ficaram feridas, mais ou menos gravemente, em consequência do tiroteio, e entre elas algumas que na estação aguardavam a chegada dos comboios das Caldas e da Figueira.

Conduzidos pelo agente da polícia 711, receberam curativo no posto da Misericórdia, prestado pelo clínico de serviço, o sr. dr. Gomes da Silva, auxiliado pelo enfermeiro Alves, os seguintes indivíduos, que apresentavam extensos ferimentos na cabeça e pelo corpo, de coronhadas e espadeiradas:

António Barbosa Rodrigues, de 18 anos, rua Nova do Carvalho, 15, 3º; Formolindo Neves Coutinho, de 21 anos, empregado no comércio, rua da Oliveira, ao Carmo, 26, 2º; Manuel dos Santos, soldado 87, da guarda republicana; Casimiro Guilherme, de 32 anos, empregado nas Cozinhas Economicas, travessa do Rosário, 24, 3º, E.; Alberto Martins, empregado num club de recreio, e Francisco Ferreira, moço de fretes, rua da Atalaia, 87, 4º, este último tendo também uma costela fracturada.

No hospital de S. José receberam curativo os seguintes indivíduos:

João de Sá Brazão, soldado de artilharia 1, ferido com uma espadeirada na cabeça. Recolheu a casa depois de pensado. João Luiz, guarda republicano, ferido com bala no cotovelo. Recolheu á enfermaria de Santo Antonio. Raul Gonçalves, 15 anos, pintor, ferido com uma bala de raspão na cabeça. Recolheu a casa. João Ribeiro, cabo da polícia cívica nº 90, da13ª esquadra, fractura da perna direita, produzida por bala. Recolheu à enfermaria de Santo Alberto.

No banco do hospital de S. José foi operado um homem que recebeu um tiro no ventre, e cuja identidade se desconhece. Recolheu à enfermaria de Santo Alberto.

No hospital estiveram os srs. drs.Lobo Alves, director do hospital, Damas Mora, director do Banco, Torres Pereira, Moura Cabral, Vasco de Lacerda e Macieira, e o secretário da direcção, Magalhães Fonseca.


O sr. dr. Sidonio Paes morre no hospital 

Ao chegar ao hospital de S. José, o sr. dr. Sidonio Paes foi imediatamente conduzido para a sala do Banco, onde o médico de serviço, sr. dr. Torres Pereira, o recebeu, comparecendo também ali o sr. dr. Damas Môra.

Poucos momentos de vida teve. Apresenta dois ferimentos no peito.

No hospital compareceram os membros do governo, tendo também acompanhado o Chefe de Estado até ali o sr. secretário de Estado da guerra.

O cadáver do sr. dr. Sidónio Paes continuava de madrugada na sala do banco, rodeado por grande número de oficiais.


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